Estamos com uma interação no canal “Segurança Psicológica” lá no Discord da Humanize, onde surgiu um papo aberto sobre o tema, com uma Humanizadora. Papo vai, papo vem, me ofereci para contar um pouco da minha experiência com o tema. A breve partilha virou um textão de blog. Resolvi registrar aqui.
Então… vamos à minha experiência. Meio strip-tease psicológico, adianto. Mas vamos lá. Tô me acostumando a me despir assim. 👀
Primeiro, contexto
- Eu me relaciono com a Laura faz 9 anos. Mesmo tempo que estudo e pratico CNV.
- Eu sou uma pessoa técnica e extremamente racional. Além de ser demasiado nerd. Estudo monte de coisa e tenho facilidade pra organizar ideias (ao menos na minha cabeça caótica).
- Tenho uma tendência a achar que sei demais sobre mim e outra a fingir pra mim mesmo que dou conta de tudo.
Agora, a história
Por uns bons anos, na relação com Laura, eu sempre me vangloriei pra mim mesmo de que eu era super adaptável e poder dizer sim para tudo que ela achava importante fazer ou mudar. Com o tempo, já facilitador de CNV, eu ficava com o ego mais inflado e dizia internamente: – Claro que eu não preciso dizer tal coisa, eu posso lidar com isso e me adaptar. Por ela, inclusive. Já basta ela lidar com a questão de se adaptar ao Brasil (ela é belga).
A real, e só fui me dar conta muito tempo depois, é que eu era um garotinho medroso de tudo que se escondia na marra de sabichão e que queria enfiar a cabeça debaixo da terra ao menor indício de conflito. Eu sou puramente aquele velho ditado: “dou um boi para não entrar em um conflito, e dou uma boiada pra não sair”.
Aliás, o lado sombrio da minha racionalidade é minha falta de traquejo emocional para lidar com várias coisas, e que sou capturado por um espírito de treta eterna e criança birrenta quando imerso num conflito.
PS: 9 anos de CNV e prática no relacionamento me ajudaram a desenvolver recursos e alternativas pra dar conta dessa sombra minimamente e ser saudavelmente ajustado.
Tá virando um textão de blog. Agora que vi.😂
Quanto mais eu dizia sim pra Laura e me ajustava, justificando que eu dava conta e me colocando como altruísta que fazia isso por ela, mais eu cultivava um desconforto interno. Comigo e com ela. E isso é problemático, pois estou olhando só pro meu umbigo agora.
Segurança psicológica? Zero. Isso, eu comigo mesmo né. Eu falseava a segurança, e ainda era arrogante achando que fazia por ela. Até que em meio a nossas tretas e conversas eu comecei a mudar um pouco. Óbvio que eu não daria conta de sustentar essa máscara que criei para ser adaptável e manter a relação. O custo pra individualidade começa a ser maior, e maior.
Resultado: comecei a dizer não. Virei uma máquina de dizer não. Doa a quem doer. A Laura tinha que entender e se adaptar. Eu me senti seguro pra falar, mas deixei bastante de olhar pro que ela achava importante. Era o típico “se vira, você que tem que lidar com isso, pois eu preciso ser cuidadoso comigo”.
No universo da CNV, é aquela historinha de “você é a única responsável por cuidar das suas necessidades, e ponto final. Sem nuance alguma. E isso é bem problemático, pois também é um ambiente meio hostil.
Com o tempo, comecei a ter um equilíbrio maior. Passei a escutar e ponderar, e fazer escolhas únicas, em situações únicas. Deixei de ser refém do submeter-se ao que ela dizia, ou defender com unhas e dentes o que eu achava. Refém mesmo, pois essas atitudes são como tsunami. Chegam com tamanha força que a consciência não controla. Mas esse papo iria pra a psicologia se eu aprofundasse aqui. Fica pra outro tópico. A questão é que comecei a desenvolver recursos internos que me apoiavam a seguir numa terceira via.
Hoje, eu consigo dizer sim e não com mais confiança. Negociar com mais presença e segurança. Claro que ainda sou tomado pelos meus afetos e tem vez que volta a submissão ou defesa da minha alternativa, e felizmente conto com a Laura (no aspecto cuidado com a relação) para me puxar a orelha e lembrar se esse é mesmo o caminho que quero seguir (do piloto automático). Às vezes, ajuda. Às vezes, dá ruim mesmo. E aí a treta e desentendimento surgem, e resta a conversa posterior para cuidado e reparação. Felizmente, sempre conversamos.
Niiiiiisso tudo, tem um combinado lá do início da relação que não mencionei, que fez toda a diferença. E torna tudo que falei, paradoxal. Era algo assim:
Que em nossa relação, você tenha espaço para ser inteira com o que você é, inclusive com seus desafios. E que eu tenha espaço para sempre dizer que não gostei de algo, quantas vezes forem necessárias. E isso não significa que você precisa mudar por mim, pois também é meu trabalho aprender a lidar melhor e de forma mais suave com algumas atitudes suas. Ao mesmo tempo, fica o convite para você mudar coisas que acha que cuidariam de mim, mas por escolha consciente e não só para me agradar ou com medo de perder a relação.
Uma via de mão dupla. Para ela e eu. Até hoje, funciona assim. É nossa base.
E, aqui, o paradoxo:
A nossa relação tem como base desde o começo a pressuposição de um espaço de segurança psicológica. Mas por vários momentos eu não me sentia seguro psicologicamente para me expressar e ser inteiro. E me omitia. Porém, essa não segurança era prevista em nosso acordo de espaço seguro, pois é importante ser quem somos. E isso inclui não se sentir seguro e agir de forma meio destrambelhada (que gostoso usar essa palavra 😋).
O grande trunfo, eu acho, é justamente que com o tempo aprendemos a dialogar depois da treta. Depois do impacto. Quando os ânimos estão menos aflorados. Depois que refletimos. Quando temos mais clareza de nossas necessidades. E depois que aprendemos a respeitar nosso tempo, nossos desafios pessoais, e os tempos e desafios do outro.
Gosto de brincar que estamos juntos “apesar de”. Porque escolhemos estar juntos e trabalharmos internamente, para crescermos. Por nós mesmos, e um pelo outro. Tentando escolher consciente por cuidado e amor, e não só por medo de perder. Sim, pelo medo de perder também. E conversamos sobre esse medo às vezes. Eu seria cínico se dissesse que esse medo foi superado e sou um alecrim dourado super bem resolvido com tudo. 😂
Voltando ao começo, e sobre como isso se conecta com reciprocidade, segurança psicológica e condições pra sua existência:
- Esse combinado inicial de relação que fizemos, pra mim, é fundamental em toda e qualquer relação. Claro que varia de acordo com o tipo de relação. Amizade, trabalho, cerveja no buteco, desconhecidos na internet. E pode ser feito de mil maneiras diferentes. Talvez, isso possa até ser tema de algumas conversas de aprofundamento.
- Nem sempre tava seguro, apesar do combinado. E isso é da natureza das relações. A escolha consciente de se manter na relação, na troca, na conversa, pra mim é o grande segredo.
- O ponto que mais amo: a relação se constrói no tempo, não é algo estático. Ou seja, pode começar inseguro, e a segurança mesmo pode chegar depois de várias conversas. É algo a se tecer em conjunto. Porém, pode ser que alguma pessoa seja mais “tecedora” dessa manta de segurança psicológica, do que a outra. Porém, ambas estão “fornecendo os fios da relação”. A merda, e a boa coisa, a depender do ponto de vista, é que quem estuda CNV tem mais recursos, às vezes, para tecer os fios… e isso pode parecer injusto ou ser uma sobrecarga. E o motivo de estarmos nessa relação (pode ser uma conversa com desconhecido, ou amizade, ou relação familiar e amorosa) é o que faz toda a diferença para escolher esse desafio de tecer os fios e sustentar mais em nossos ombros (por um tempo, talvez um bom tempo) um espaço seguro de construção. Trocando em miúdos: escutar de mais, ser escutado de menos, aguentar projeções, aguentar interpretações, e manter a conexão.
- Uma rede de apoio pra nos escutar super pode ajudar, pois nem tudo precisamos dizer pro outro, e dá pra resolvermos internamente. Outras, a rede de apoio pode ajudar a refletirmos e sabermos quando e como dizer (há coisas que PRECISAM ser ditas). Ou uma boa psicoterapia pode ajudar também.
- Estudar me ajuda a fazer escolhas mais desafiadoras, pois passo a compreender os aspectos invisíveis das relações. E os temas daqui da comunidade, modéstia à parte, são justamente pensados pra esse aprofundamento. 💖
- Isso tudo que falei, esbarra muito no aprender a segurar o rojão e bancar as coisas, fazendo muita academia. Ficando fortinho. Mas, um segredo agora: tem horas que é preciso jogar a bomba e deixar explodir, e aí ambos cuidarem da relação. Afinal, a gente não é babá de ninguém, e achar que o outro não vai dar conta é de uma arrogância enorme. Talvez jogar a bomba, em alguns casos, seja o mais importante e necessário pra cuidar da relação. Não à toa, a fênix é um dos animais que mais amo, pois ressurge das cinzas. E aqui, algo chato também: tem horas que a relação talvez não ressurja das cinzas. E, então, o luto é um grande negócio a se falar sobre. Em qualquer tipo de relação. Superficial e mais duradoura. E isso pode ser outro papo.
Esse último ponto carece ainda de muito mais exploração, pois é sutil e sensível seu entendimento. Pois não é sobre tocar o foda-se simplesmente e sair dizendo tudo pelos cotovelos, mas sobre se vulnerabilizar quando não tá dando conta. Olha mais aprofundamento aí. 🙃
PS1: isso tudo é minha experiência na relação. Algo pessoal. A experiência da Laura é todo um rolê que só ela pode contar. E ainda teria a perspectiva de nossa vivência conjunta nisso tudo, que é mais um rolê e que esbarra um pouco em tudo que escrevi, mas é muito mais amplo também.
PS2: gosto de usar meu exemplo da relação com a Laura, por ser de longa data, mas realmente acho que o pano de fundo da segurança psicológica que relatei pode ser extrapolado para qualquer tipo de relação. Com devidas contextualizações e compreensões da unicidade de cada pessoa envolvida, e da “alma” daquela relação.
É isso. A conversa continua lá no canal “Segurança Psicológica. Quem sabe outro momento traga mais aprofundamentos aqui no blog.
Responses
Adorei conhecer seu blog, tem muito artigos bem interessantes.
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Este foi o quarto artigo que acabei de ser relacionado a esse tem e foi o que mais deixou claro para mim. Gostei. Vale cap resultado
Que legal que gostou, Aline. A gente tentou falar numa linguagem cotidiana e conectado com situações que atravessam a vida de muitos, que é uma relação amorosa e/ou familiar.
Seja sempre bem-vinda a interagir com a gente! 😊
Estabelecer um espaço de segurança psicológica parece simples, mas é algo muito difícil, porque envolve saber ouvir, respeitar e também saber expressar os próprios sentimentos. Quem de nós sabe realmente fazer tudo isso? São habilidades raras e seu texto ilustra bem o quanto é trabalhoso estabelecer e manter esse espaço ao longo do tempo. Também nos mostra o quanto vale à pena trabalhar nisso.
Olá, me chamo Bernadete e curto muito tuas reflexões. Sinto verdade, posicionamento firme e uma brisa nas palavras q registras.
é um texto denso, inspirador e envolvente q nos convida a olharmos p as relações q construímos ao longo da nossa jornada.
fez sentido p mim 1 das partes sustentar a relação por um período maior, afinal quem tem mais condições internas, a princípio será mais demandado.
fiquei pensando sobre o “explodir a bomba” e, neste momento, vou deixar decantar p uma possível prática, 😉
gratidao por compartilhar conosco teus conhecimentos e vivências, são mt relevantes p mim.
Muito grata pelo compartilhamento. Creio que muitos, como eu, poderão se identificar com o seu relato.
Que bom que chegou com identificação por aí, Vanessa. A ideia era realmente escrever de forma a dialogar com o cotidiano das pessoas, para além de termos bonitos, fofos e acadêmicos (que é o que vejo bastante, quando escuto e leio sobre segurança psicológica).
Sensação de missão cumprida! ♥️